Jazigo Perpétuo (Ou A Casa do Exílio)
#1
Portões do Exílio
Não
tinha muita vontade de estar ali, entre aqueles rostos, uns quase centenários,
que me deveriam ser tão familiares. Todos trajavam negro, o melhor negro, e me
davam com as caras engomadas e taciturnas.
Tio
Ângelo e Tio Décio acompanhavam a Vô Antônio, que não moveu uma ruga durante
toda a cerimônia. Estavam também meu pai, Tio Heitor, Cláudio e Lalinha. O
cemitério emoldurava uma capela antiga e triste, que era cercada por grades,
para que os animais não destruíssem seu pátio e seu modesto jardim.
A
gente andava entre as cruzes cravadas ao chão, esterco e a terra mexida dos
corpos enterrados sem pompa e sem lápide. Apenas o jazigo perpétuo da família
Pesto era feito de mármore e era protegido. As pedras mais claras e polidas
denunciavam que este havia sido recém ampliado. Um elefante branco em um
cenário pitoresco, que era adornado com castiçais dourados, frases devotadas e
rostos esmaecidos, quase todos femininos.
Todas
as mulheres da família morreram cedo e de mortes trágicas. Um padre terminava
de desovar mais uma para as bandas lá, diante de carões antigos de olhos
incontáveis, arregalados. Eu não sabia a quem estava velando, mas minhas
memórias dali não me agradavam em nada.
Minha
mãe morreu de lúpus quando eu ainda era pequeno. Então ficamos eu, meu pai,
Lalinha e Cláudio. Lalinha é a única mulher com quem convivemos, além da Dona
Mirtes, que limpa a casa e cozinha quatro vezes por semana. Consta que nos
outros três ela reza e amaldiçoa o finado marido, ao mesmo tempo.
Lembro-me
da minha mãe com a pele árida, exposta. Entrava no meu quarto com passos
encharcados e dizia que sentia seu corpo queimar, de um calor ruim. Entre seus
delírios me dizia muitas coisas. Que eu tinha sorte em nascer homem. Que as
mulheres da família eram amaldiçoadas. Que eu nunca deveria me casar, ou ter
filhos.
Lalinha
era muito pequena nessa época e não se lembra de quase nada. Mas é assombrada.
Tem certeza de que vai morrer cedo. Morrer de doença. Desde o falecimento
de nossa mãe ela levanta no meio da noite para deitar-se ao meu lado, ou de
Cláudio, porque tem medo de morrer dormindo, como vó Elza. Achei que ela não
lembrasse de nossa avó, eu quase não lembro.
Cláudio
foi quase sempre calado, entretido somente com seus interesses. Gosta de
insetos e vem desde a primeira infância colecionando muitos espécimes que
encontra pela casa ou por suas incursões ao jardim, que fica na parte de trás
da propriedade. Um lugar abandonado, que foi sendo tomado por mato desde que minha
mãe adoeceu.
As
noites eram frias lá, e eu quase posso senti-las. Todas as madrugadas eram
interrompidas por minha mãe, que se deitava ao meu lado. Ela cantava cânticos
indígenas que eu sabia que só existiam em sua mente febril. E em uma
dessas noites ela morreu. Nua. Sobre minha cama. A pele em carne viva. Carne
morta.
O
boato se espalhou e começaram a surgir supostas memórias de mau gosto
envolvendo a minha mãe e as perversões que se dão na minha família.
O
escândalo foi tamanho que meu pai se mudou para casa de férias, no interior. Já
tinha se aposentado da marinha porque perdeu a visão do olho esquerdo. Um
acidente com produtos de limpeza usados nas máquinas do navio. Como sempre,
correram muitas histórias paralelas sobre o incidente. Mas a maior parte das
pessoas daquele lugar diz que ele se cegou por vontade, para manter ao menos um
olho atento à mulher louca.
#2
Quintais do Exílio
Desde
a morte da minha mãe, meu pai se alienou em seu escritório. Foi degenerando,
implodindo. Todos os dias fazia as mesmas contas sobre as economias da família
e, fechado em números repetidos, não comia nada além de mingau de aveia pela
manhã. E se já era de uma certa apatia, agora não sorria quase nunca.
Vivíamos
isolados em Piedade, onde muito se diz sobre uns 700 habitantes, mas nunca
contei nem 20. Eu e meus irmãos éramos educados em casa por tio Heitor, que se
mudou conosco para a Casa do Exílio. Dona Mirtes também se mudou para cuidar da
gente em tempo integral, mas já estava tão cega e velha que provocava acidentes
domésticos diversos e era acometida por constantes perdas de memória.
A
propriedade ficava na parte mais rural do vilarejo, sem vizinhança no raio de
um quilômetro. Uma vez por semana acompanhávamos meu pai ao centro para comprar
mantimentos. Eu percebia alguns olhares de estranhamento das pessoas da cidade,
mas estava sozinho. Meu pai se trancou dentro de sua consciência particular e
já não se relacionava com quase nada que não fosse seus fantasmas, ou seus
números. Lalinha estava sempre tão entretida olhando tudo ao redor que, na
verdade, nada via. Cláudio nunca saia do carro.
Até
que certa vez Lalinha se afastou sozinha, num descuido senil de Dona Mirtes.
Mas só quando entramos todos no carro nos demos conta de sua ausência.
Rodamos
então o vilarejo, o sol na cabeça. Não havia sinal dela. Já exaustos, a luz
caindo e a estrada para a Casa do Exílio em frente, preferimos supor que ela havia
buscado o caminho para casa.
O
carro já sacudia sua carcaça em uma pequena estrada de terra que leva ao
exílio, quando um homem vermelho e esbugalhado o interceptou e soltou algum
feitiço nos ouvidos de meu pai. Esgotado do que restava de sua suposta calma
apática, meu pai fez uma manobra fechada e acelerou o carro em direção a uma
estradinha que subia o Bosque dos Pombos. Cláudio sorriu, eu também. Naquele
mesmo segundo éramos meninos.
As
rodas frearam quase em cima de um grupo de pessoas que comemoravam o sacrifício
de um boi. A música estava parando e os brincantes, que vestiam trajes negros e
brilhantes, estavam de canto observando atentos a uma confusão em torno do boi
que agonizava. Duas senhoras tentavam controlar uma menina toda vestida de
sangue sobre um vestido branco de algodão, que urrava de uma dor que se supunha
maior que a do próprio boi. Ela gritava, tremia, tentava se desvencilhar com
socos e rangir de dentes a quem tentasse se aproximar.
Com
algum esforço, Lalinha foi domada, enlaçada, amordaçada, e todo o povo vibrou.
Foi ali, de menino, que eu entendi o ritual, o contrato implícito. De carne e
de sangue.
Essa
noite Lalinha teve uma febre tão forte que Dona Mirtes trocou sua roupa de cama
mais de três vezes. Ninguém podia dormir. Ela gritava, pedia ajuda como quem
implorava misericórdia ao carrasco. Os sons do desespero de Lalinha perpetuaram
por toda a noite.
Na
manhã seguinte Lalinha já havia se esvaziado. Imitava os sons da parede e se
dava por satisfeita. Vez ou outra cochichava alguma coisa para Dona Mirtes, sua
única cúmplice. Mas, nos olhava meticulosa e distante como quem fita aos
movimentos do inimigo. Nós carregávamos a culpa de algo que desconhecíamos, até
então.
Na
noite seguinte seus gritos retornaram perfurando nossos ouvidos e nos rasgando
o interior. E assim foi nas noites que se seguiram.
Poderia
ser essa sua a vingança particular, se não fosse também a sua tormenta.
O
ambiente se moldou em um estado de alarme. Prestes a ruir. Como quem passa o
dia esperando a sirene que indica a hora de ir ao mar, meu pai abandonou as
contas e circulava noite e dia pela casa, sem se relacionar com nada até que
começassem os gritos.
Não
chovia nunca e o calor era insuportável. A aridez daqueles dias enfraqueceu os
animais, queimou a vegetação, secou o rio. E a terra fervia tão intensa a ponto
de converter as caminhadas pela propriedade em danças sobre a fogueira.
Nesses
tempos de secura no exílio, Lalinha cresceu notavelmente. Seu corpo se tornou
esguio, flutuante. Sua tez fez-se languida e frágil. Já não se podia notar as
maçãs do rosto protuberantes e rosadas de antes. Pernas e mãos compridas, com
movimentos leves e vaporosos. Era uma dessas pálidas sobre as quais meu
tio comentava dos livros.
Não
eram os pés de Lalinha que repousavam no chão. Ela era um reflexo de um corpo
feminino pouco grave que se lançou contra o teto, mas cuja cabeleira vasta e
negra a prendia ao chão, como raízes. Eu não conseguia vê-la de outra
forma. Ela era uma presença silenciosa e fantasmagórica, sempre ponta-cabeça.
Os cabelos cortinando os cômodos por onde flutuava acorrentada.
Enfim,
nos acomodamos em uma nova dinâmica de exílio. Dias silenciosos. Noites
ruidosas, febris. Mas, fez-se ali um jogo de peças dispostas com algo de
normalidade, através da conformidade cíclica que era cada dia. Meu pai, mingau.
Livro de contas. Dona Mirtes, cozinha, rezas. Cláudio. Cláudio. Lalinha,
invertida. Eu.
#3
Paredes do Exílio
Eram
tempos de seca, e a seca é assim mesmo. Inevitável, porém, cíclica. E, assim, a
relativa constância dos dias foi interrompida pela chuva e por imprevisíveis
gritos diurnos de Lalinha. Esses, eram muito mais intensos e agonizantes que os
outros. Era um canto contínuo e linear, de alguém a ser dilacerado de dentro
para fora.
Muitos
tentaram emudecer o urro cantado de Lalinha. Médicos. Padres. Rezadeiras.
Curiosos pretensamente curandeiros que coçavam os olhos e enumeravam bruxarias
e maldições. Tias-velhas arregaladas nomeavam o capiroto de tantas e tantas
formas. Dias e noites de medicamentos, cuidados e rituais quase farsescos,
todos inúteis. Os gritos se compunham cada vez mais de desespero e clamor.
Não
nos deixavam chegar perto. Não era coisa para meninos. E até Cláudio parecia
atormentado com os agressivos comentários que não explicavam nem o começo do
que se dava no quarto de Lalinha. Dona Mirtes só fazia chorar. Chorava na mesma
medida em que gritava minha irmã. Até que se esquecia da razão do choro e ia
preparar o café.
Dona
Mirtes passava por mim alternando choro e sinais idiotas de senescência. Eu
nunca a havia visto chorar, ou a ninguém. Nunca havia eu mesmo chorado, após
inúmeros enterros. Hesitei, até que interceptei-a e pedi que me deixasse entrar
no quarto quando não tivesse mais ninguém. Narrei minha angústia. Insisti por
qualquer informação que aclarasse a gravidade dos fatos. Qualquer coisa.
Após
o almoço a avacasa sempre fic vazia. O calor úmido era de enlouquecer e não
recebíamos quase nunca visitas naquelas horas. Dona Mirtes me puxou sem alarde
até o quarto de Lalinha, depois colocou-se em frente à porta, como um cão de
guarda.
Eu
teria me divertido com aquela cena, não fosse a percepção que aquele momento me
oferecia. Mal podia respirar com o cheiro de sangue e fumaça de
incensos. Lalinha estava amarrada à cama. Uma toalha enfiada na boca
abafava seus gritos. O vestido e a cama ensanguentados. Não entendi nada
daquilo e desatinei a gritar.
Lancei
meu corpo sobre a cama enlameada de sangue, enquanto tentava
soltá-la. Após uma confusão infernal, fui tirado do quarto à força por meu
pai e meu tio, a quem eu insultava de todas as formas. Achei que estivessem
permitindo rituais de tortura sob as justificativas supersticiosas de algum
curandeiro da aldeia. Provoquei-os, chutei-os, praguejei-os, mas, só obtive uma palavra de
meu tio. Durma.
Já
anoitecia quando Dona Mirtes entrou em meu quarto. Tentou aclarar a situação,
ainda que pesarosa e confusa. Me disse que Lalinha tinha virado mulher, e que
desde então o sangue e a dor só foram crescentes. Ela enumerou então todos os
métodos inutilmente experimentados, os inúmeros diagnósticos, todas as
tentativas que, após meses, não apontavam uma solução sequer para o mal de que
sofria Lalinha.
Passaram-se
dias e noites, as noites piores que os dias. Até que voltei ao quarto de minha
irmã, quando todos tentavam dormir. Soltei as amarras e deitei-me ao seu
lado. Contei-lhe histórias, falei-lhe
das anciãs turcas que viviam mais de 500 anos e falavam a língua de uma extinta
linhagem de camelos mitológicos. Lalinha é que era boa de contar histórias, antes,
mas ouviu a tudo com atenção e, naquele momento, não gritou. Não sei se por
alívio ou fraqueza.
Peguei
no sono e, quando me despertei, Lalinha ainda estava deitada ao meu lado. Seu
corpo sem qualquer sinal de vida. Me precipitei até o corredor que dava para o
restante da casa. As paredes todas manchadas de sangue. Tentei correr, as
pernas mudas e inúteis. Tentei gritar, a voz trêmula e falha. Me arrastei até a
sala principal e comecei a quebrar tudo que encontrava pela frente. Sem um
porquê, sem sinal de emoção. Cada porcelana. Cada bibelô. Cada objeto quebrável
foi destroçado, pacientemente.
Os
outros chegaram sem entender toda aquela desordem e se surpreenderam também com
as paredes do exílio manchadas de sangue. Dona Mirtes tentou me deter por um momento,
eu aquele menino em pedaços. Vestido do sangue de Lalinha, eu repetia
movimentos quase inconscientes. Ela passou a mão sobre meus ombros e retornou a
seus afazeres como se não houvesse qualquer coisa fora do lugar. Seus passos
pesados sobre a porcelana estilhaçada.
Meu
pai voltou do quarto de Lalinha, sussurrou algo no ouvido de meu tio e se
trancou em seu escritório. Tio Heitor saiu. Cláudio ficou sentado quase que
imóvel sobre a cama de Lalinha.
Era
como se ficássemos assim por dias. Meu tio retornou então com um exército
funeral que imediatamente começou os preparativos. Cuidaram de tudo. Tudo. Até
do enterro. Nós só precisaríamos vestir um luto que nos apresentasse bem na
cerimônia. Um antigo ritual de família. Nada de novo, apenas um ciclo.
Saídos do exílio,
nada havia mudado. O jazigo perpétuo da família Pesto ainda era feito de
mármore. De elefante branco. De cenário de castiçais devotados. De frases
esmaecidas. E de mulheres que me deveriam ser tão familiares, todas elas
cravadas à terra.
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