ESPRESSO DUPLO


As malas já estavam prontas àquela altura, mas eu não sabia. Me levanto cambaleante, passo por Ana, cruzo o corredor. Panela. Água. Fogão. Música em língua desconhecida. Me desperto quando já estou passando o café. Ela, apoiada no portal, me olhou com seus olhos ateus, agora descrentes de mim. 

Eu que deveria fazer isso, era certo. Já havia tentado terminar diversas vezes. Em outras, cogitei ir embora sem dizer-lhe uma palavra sequer. Tudo parecia um bom motivo. Não gosta de palmito, viaja mais do que eu, faz troça das minhas paranoias e anda com aqueles hippies aprendizes de maconheiros. Violão em coreto de praça, táxi pra estação lunar. Fico pensando se haverá coisa mais ridícula.

Por certo, há. Mas justamente naquele instante, naquele exato segundo, eu não tinha sequer um motivo para querer deixá-la ir, muito menos algum convincente que a fizesse ficar.

Ela nem tinha tomado o café. Malas prontas.

Inconformado, fiquei pensando o despropósito de sair assim tão cedo, tipo fugitiva. Justo ela, que sempre gostou de deitar as horas o máximo que podia. Ficar lá, imersa, até às quatro da tarde. A beleza casual, que reside em receber o vazio necessário.

Também não fazia sentido ir embora em plena segunda-feira. Carros, filas, buzinas, filas. Melhor seria esperar o dia seguinte. Aí eu olhava para Ana e tinha a certeza: eu estava dançando sozinho.

De repente a mala pronta se converte em um gigante na sala. De repente, asfixia. Puta que pariu, preciso de cafeína! É necessário que eu viva, pense e até ame Anas, ou não. Mas sem a cafeína, a existência é uma tortura de mal gosto. 

Ela se fez gentil. Tentou demonstrar qualquer forma de satisfação que se parecesse com tristeza. Eu devorava o café. Ela enumerava espinhos, tempestades. Eu pensava no pior café em 35 anos.

Corri para a pia, atrapalhado. Vomitei as tripas. Eu sabia que era café, mas parecia arsênico.

Tive um colapso nervoso. Comecei a gritar e a arremessar coisas. Acusei-a de tentar me envenenar. Disse até que ia chamar a polícia. Ana só deitou a cabeça no tapete da sala. Ele dava e recebia a calma essencial de estar viva e cambaleante. Como? O que trama Ana?

Vasculhei então cada centímetro das bolsas e malas atrás do veneno. Cada maldita caixa. Eu quis que ela chorasse, desejei alguma fagulha de paixão e catarse. Ela me olhava dentro dos olhos, depois voltava sua atenção para os padrões da cortina, como se houvesse deleite neles. Um secreto acordo estético entre ela e as coisas, vivas ou estáticas.

Não. Ela não entendeu coisa alguma. Estúpida! Que vida é essa que acomete Ana de portas abertas?

Um velho pânico, achei que o teto começava a descer. Não respirava, delirava febril. Ela então tirou minha roupa úmida e cuidou de mim, nu, mas como se cuidasse de um menino.

Mesmo naquele gesto cordato, ela levou a última coisa que me restava: virilidade.

Então é isso. Ponto final. Disse a ela que ficasse com a casa, os móveis e até com a cafeteira. Eu que iria embora, como deve ser. Mas não sabia para onde.

 Ela disse que ficar ou ir eram ambas formas de estarmos potentes. Dar e receber. Tomar e ser tomado. Amor fati. O ambíguo da fechadura: fora, dentro. Cacete! Não entendo uma palavra do que ela diz, em que realidade fui eu casado com ela? Ana não é ninguém, está claro. Ana é só Ana!

Entrei no primeiro bar e pedi um expresso duplo.


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