Febre Pós-pós-moderna

Das coisas pós-pós-modernas que me consomem e devoram, os campeões são, sem sombra de dúvida, os verbos novos e os dispositivos eletrônicos. Dou desculpas para mim mesma a fim de cometê-los, de vez em quando. Ambos. Aliás, para falar a verdade, eu tenho feito uso crônico dos dois. Infeliz e invariavelmente, após acordar, ao responder um e-mail, almoçar ou trabalhar atrás da tela - artista suburbana do hell de janeiro fakeando a paulistinha low profile e amarrotada atrás da caneca-jarra de café. E o repito, enquanto faço tipo, alegando constrangimento. Como todas as drogas, a tentação é que pode ser irresistível diante do grande vazio existencial de uma terça-feira. E como sou suscetível a cafeína, pessoas sarcásticas de óculos e bobagens da linguagem, isso fica aqui me provocando. 

Ontem eu saía de uma reunião online longa, já bastante faminta e arrebatada de uma gripe forte. Fui ao mercado mais próximo, flutuando de virose e indisposição, ar rarefeito de máscara e luzes saturadas como num videoclipe indie dos anos 2000. Mas, nem assim, pude resistir a uma conversa à moda amenidades verbonovísticas com um sujeito 1,90 por 1,90 e 4% de gordura que, como eu, comprava um suco verde.

Parece bobagem, mas eu sempre escorrego a minha introspecção na frente de desconhecidos em filas de banco, bancos de praça e supermercados. Mesmo me enfeitando com fones, coques no topo da cabeça e roupas que podiam bem ser pijamas. As conversas-bumerangues sempre me derrotam.

E suco verde parece tornar compulsório fazer amigos. Mas quem resiste a essa iguaria detox? Estava eu ali, vivendo essa conversa peculiar e escorregadia na fila do autoatendimento - uma outra pós-modernidade que, devo admitir, eu bem que gosto, por que me entrega o superpoder de desconversar amenidades com desconhecidos - não dessa vez! Suco verde, gengibre e castanhas me tiram a chance de ser uma escritora antissocial, malvestida, descabelada com óculos de aro grande e música triste mais alto que o recomendado. Parece que o detox me uniu automaticamente a um grupo de pessoas que usa autoatendimento, conversa na fila, pratica estrangeirismos e posta bebidas verdes em redes sociais. Não tem dia ruim para a gente se sentir um pouco pior com a gente mesmo. Só que naquele dia eu ganhei dicas de ouro para jejum intermitente.

Nessa ginástica social, deixei escapar uma expressão tão estranha que me senti dublada por uma influenciadora fitness - e certamente não sou nem uma coisa nem outra. "Endorfinar antes de comer". ENDORFINAR. ANTES. DE COMER. Eis minha sessão vesperal de abdução. Endorfinar nem é verbo novo, nem novíssimo, mas parece. Me soa como um primo-irmão de sextar. Amigo do vizinho de clicar. Colega de firma de postar. E com esses, olha, é dose. Já chegam batidos com culpa, nostalgia, vaidade e couve crua. Sem peneirar.

Engajar, também, é uma coisinha, sabe? Depois que a gente usa a primeira vez, é um entra e sai de engajamento. Está para os verbos novos, como o abadá está para as micaretas. Apropriado pela tecnologia, dominado pelo capital, pela comunicação digital e por pitching de elevador de artista que precisa provar em si aquele je ne sais quoi de influenciador. Mas daí eu já tô tomada pela febre, conversando de pracinha pra cachorro com o maromba da fila e pensando que há chancelas mais populares, que eu adoro. Embrazar. Mitar. Trollar. Panelar, esse bem brasileiro e ligeiramente terraplanista. Googlar. Tuitar!  Diariamente, me sinto contribuindo com essa realidade alternativa que já se torna vigente e parece arrancar a metonímia da poesia com os dentes.

Transar a linguagem como o algoritmo faz com nossas conversas de fila. Mais tarde, como gentileza retribuída, a nave mãe maravilhosa me oferecerá triturador de alimentos, polpa de fruta congelada, mordedor inteligente para cachorro, junto aos aparadores e mesinhas de cabeceira estilizadas para plantas superfaturadas. Bem urban jungle gypsy tropical, saca? A gente merece!

Vocês três leitores que me acarinham com a leitura e atenção para com este blog,  podem ficar tranquilos e descansar seus corações. Sou uma alma à toa, mas não pretendo dedicar esse depósito de pensamentos ao verbonovismo. Mesmo contendo em si a sensualidade dos movimentos e fluxos cambiantes, fica tudo desviando demais pelo real que é coisa. E eu preciso daquela pequena dose cavalar de melodrama, metafísica e prosa poética para ser funcional na vida.

A fila do autoatendimento andou, o grandão seguiu seu caminho de pai de pet fitness que você respeita, deixando o sistema do mercado livre para cair bem na minha vez. Me restou o mesmo destino das tradicionais filas de caixa cheias e lentas, 40 minutos depois, e um suco verde bebido em temperatura ambiente. Sensação térmica 55 graus e corpo febril.

A palavra, ela nem sempre dá conta...

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