O vermelho a que talvez sempre retorno
Quando adentrei os corredores luminosos, numa maca fria e gozada, com uma dor de arrebentar os quadris, eu aprendi muito mais sobre mim do que no meu primeiro ano de faculdade. Aqueles segundos de riso quase preso, grito muito preso, roupa aberta na bunda, soluço colérico, me passearam entre burburinhos e luzes artificiais. A des-instância materializada. De corredor de mercado. Branco. Frio. Duro. Havia ali sangue demais, sangue em toda parte, mas sangue que não se vê.
Entre as tecnocracias, jargões, vultos, quase-tias extremamente perniciosas, grosseiras, havia eu. E uma persistente lembrança de um seriado médico qualquer, meio ridículo. Sim, ali, feita pequena, feita planeta, havia eu, porque sou e existo aqui. O real, já talvez não.
Vísceras abertas, mas ocultas. Vou dizer essa palavra de novo: vísceras, com boca cheia, para fazer existir. Sangue, fluidos, placenta e todas as coisas deselegantes ao mundo branco dos homens. A morfina, a náusea, o vômito. Segura o marido no corredor que vomitada é coisa feia de se ver. Vou repetir essa também, pra mim, porque hoje me sinto exausta, enfática e repetitiva: vômito. É feio, mais que as tais vísceras, a placenta, as fezes escondidas. Ali, sim, eu tenciono uma existência vívida.
A vida que nasce na antinatura é a mobília. Mas eu sou repentina casa, quente.
Era uma manhã indistinta. Quarta-feira, nem cinza e nem azul. Quarta-feira branca. Eu amei e odiei as minhas repetidas vísceras. A pulsação. O medo intrínseco e frágil. A fêmea que há, no ocaso. Que sou. As garras desafiadas. A profana. O grito preso, não mais. O de direito, e também o falsamente ofertado. Porque até o grito nos é ofertado. Grite semínimas em fá sustenido, mas só de miudinho. O teatro pestilento invertido existe, afinal, milagres estão por aí, já os viu? À medicina, à engenharia, à arquitetura, à moral. Agradeça. E grite. Mas só um pouco... E eu não gritei. Não saiu, mesmo com a dor extasiante, eu era uma inteira uma dor só de olhos e ouvidos, sem boca.
Saí com novas pregas e remendos dentro. Me acolhiam ali a coceira no rosto, quase uma cosquinha doída, assim como a loucura morna e fria de uma cama cambiante. Me acolhi. Num choro de transbordamento absolutamente constrangido. Ora, mas por quê das vergonhas?
Eu sou um lugar quente. Confortável. Estrangeiro. Arredondado, sem arestas, aparas. Me olham com olhos de júbilo, mas me estranham - eu sentia. Uma energia quente no peito, dessa que só amor novo faz com a gente. Não aquilo que esperavam e torciam pra mim, mas uma outra. Nascia uma mulher desconhecida. Uma que dava uma mão a cada micro centelha de luz que paira sobre a existência, calor essencial e magma - e a outra mão, ao abismo e mais completo e vazio. Branco, leitoso, oco, asséptico, apaixonado. Eu sentia enraizar do meu ventre uma vergonha lancinante e trágica de amar um outro alguém como um dínamo de tudo e de nada.
Supus, devia estar grata pelo amor materno, afinal o sentia. Tem quem não o sinta. E a mim, me percorria. Me esquentava. Me esfriava. Me fazia rir de mim, a partir de então, todos os dias. De regozijo, prazer. E, enfim, ir com frequência turca chorar no banheiro, envergonhada do tombo de humanidade e sangue que eu tinha. Eu tenho.
Teve seu fim o tempo das mulheres de aço. Da minha, ao menos. Chegava a vez da vulnerabilidade desconcertante. De dedinhos tocando as minhas bochechas, meu colo e comungando com o meu alimento. Foi mesmo a derrocada estóica. Um embrulho cheio de fitas e sub-embrulhos colocado sobre a minha cama, com manuais de instrução algo bíblicos maiores que a própria coisa - assim, coercitivos, em língua estranha e mesclada, de muitos acentos, e feitos de tantos autores conhecidos e desconhecidos. Manuais duros e sublimes, sempre a me sublinhar, desenhar e imputar como eu deveria sangrar.
Passei cascas de mamão em meus seios feridos e me estiquei ao sol. Estava no manual. Os seios ardendo à mostra na janela, não. O autocuidado feminino deve ser disciplinado e cortês. Para além das janelas, algumas famílias assistiam à natação dos filhos. Me viam? Eu também estava ali.
O apartamento...Quente. Recicatrizando um cheiro adstringente e ardido.
Pegaram a criança para dar banho, disseram. Eu deveria descansar por 10 ou 20 minutos. Mas o que são 10 e 20 minutos? Qual a marca temporal ou a unidade de medida pra sentir o tempo? Desci para o estacionamento. Com roupa de dormir e de observar o xixi dos cachorros a escorrer pelo bueiro entre carros estacionados. O suor descia lento como os minutos. Foram dias, meses? O céu azul por trás dos muros, redes de proteção e da goiabeira parecia mais metálico. Ainda era verão, e aquelas famílias provincianas daquele condomínio popular não eram diferentes de tantas outras famílias de subúrbios do Rio. Alegres, solares e barulhentos juízes.
Todos! Dizer algo de todos me parece ser genuíno exagero meu. [O que é afinal toda e qualquer coisa emparelhada dessa forma?] Mas de onde eu sentia, eram todos, talvez ou, possivelmente, muitos! os que tinham mãos grandes e hábeis para mexer dentro de mim. Meu estômago, encostado à faringe. A bílis, próxima à costela mais alta. Pulmões alando meus intestinos. Era como eu vagava circular e desmontada pelo estacionamento. O vapor quente se elevando do chão. O suor lavando meu corpo estranho.
Se os meus dias se preenchessem de cansaço e torpor, para qualquer visita cabiam coisas como bulas e guias. Bulas herméticas e prescritivas de como cada qual atuaria da forma mais correta, segura, interdisciplinar, morfológica, figurativa, empírica e caridosa. Vocês sabem, tudo aquilo ao qual eu deveria estar grata, dócil, compreensiva, obediente, materna demais, magnânima de menos, flexível, dura, intransigente, úmida e quente, fria e higienista, quieta, sombría, dramática, frígida, direta, obscura. Todos sabiam, tudo me sabia. Até hoje devem saber do que não sei, do que não soube.A vista do céu da garagem acinzentou-se. Eu via as flores mexendo, pássaros, micos e cachorros latindo. Quase blindavam o ruído dos carros. Via a minha própria janela de frente e as plantas pareciam menores e com sede. As janelas eram mesmo minhas? Havia nelas certezas robustas penduradas em móbiles a respeito de personas minhas quase-saídas de Lorca, reproduzidas com todas as cerimônias solenes. E havia muitas certezas, já o disse? A certeza impregnada de não, nunca, me perguntar se é imaginário, ou se não. De estar boquiaberto com qualquer reação sangrante minha a supostos ditos a respeito de sentimentos que não sinto, não sentia, não imaginava sentir. Mas que ao outro era sempre manifesto. Se eu disse mal, ou não disse nada, ou se bebi de forma inconsequente e adolescente e fui entreouvida. Nunca me perguntaram muita coisa. Ou questionaram. Não exigiram sequer desculpas a serem entendidas. O que me ofereciam eram sempre certezas que tramavam interromper o primeiro sibilar de fala, meu. Era eu o folhetim, o cartum que contaram na sala de espera, era eu engasgando no meu sangue e sangue de outros.O silêncio, a violência. O grito, o injusto da moral. Estava ali, espalhado nos dias, nas fraldas, na bagunça, nos não afetos, nos desconhecimentos meus, na não emancipação imposta, gentilmente. Estava ali também, eu sei, dito-não-dito, o direito essencial ao grito. Assim como ao amor que se descobre sozinho, autoconsciente, silente. O retorno ao próprio ventre. Ao NÃO. Sim, essas adoráveis quimeras estavam ali, comigo, feita agora autorretrato estourado e difuso. Automusa, autogenitora, compadecida. Como toda mãe, boa e vil.Era uma nota no rodapé do sofá gasto pelo gato. Uma dica, de que estava em conquanto teste pela existência, mas deveria me manter grata por tamanhos mimos e presentes que me dava a valsa dos dias. Eu era a ambiguidade de um muro, sendo a própria casa. Uma passagem para nenhuma intimidade com ninguém, porque assim são ideias sem pernas e sem sexo.Esse é o momento do ritornelo, da distopia.
Percebi-me peça de um quebra-cabeça que não há. E fui refazer minha casa. Em choro. Em silêncio. Fui ser o éter do dúbio. Do rir-se. Sabe?! Me escaparam. Não sei por que, mas me escaparam risos de mim sobre mim. Sobrara um rascunho mal feito de uma miragem. Me viam da janela e deleitavam-se. Cairam-se os vidros, o patamar, eu fiquei. A imagem já não era assim de tanto entretenimento, então, que seja a namoradeira a viga-mestra anamórfica e fria. Seja ela a alegoria daquilo que não sei. Seja ela o não dito, desde que apontado.E eu fui. Cocote do que não há. O barulho ruidoso e equívoco de quem não sei ser. Discurso indireto livre do que não foi dito. A polca que não toca no afluente do rio. O absurdo. Senti como se me tirassem do verso antes do refrão. Mas, felizmente, silêncio é algo que eu ainda sei dar.Na pausa. Há. Música.Era uma quarta-feira quente e infernal em que a mãe podia não estar. Estava também a exaustão, a sensibilidade nas narinas abertas. Eu sentia, eu pedia ajuda, e reconhecia meu próprio abraço. E foi esse trago quente e vermelho o que finalmente gritava. Colérico. Ferino. Animal.
Eu dizia sempre baixinho, mas nada obstante, numa onda sísmica, num tapa. Olha…eu ainda estou aqui. Vê! É de mim que você fala. Eu ainda sou, eu ainda retorno. Eu amo. E meu amor sou eu. Eu sinto, mesmo quando você não está olhando e falando e falando e falando. Em mim, nunca comigo. De mim, não através, mas sobre. Abra a porra dos olhos e ouvidos e escute para além de pausas. Não sabe como se valsa? Eu retorno ao vermelho que há todos os dias, apesar de vocês e dos seus medos. Mas, para mim, sem consolo. Para mim, selva e arte. Porque se tem algo que a mãe aguenta é porrada.
Fitem, pois, a minha carne aberta. Não mais oclusa. A estrutura em planta, o mapa da minha emoção escancarada, dedico a esse ciclo dos tempos. Me fazia casa de mim, enfim. Mas isso não pode ser? Como pode essa uma mulher, a calar-se, ter calma e força? Mente, é certo, ou, talvez, não sente.Quente. Perigosa. Calma, a calma. Sempre tive o péssimo costume de deixar as minhas portas abertas, apenas encostadas. Vulneráveis a ventos e maus curiosos. Mas é que é tão bom deixar ventar e receber tornados fresquinhos com café quente. O quarto morno e aconchegante, a sala vazia. Forçaram as entradas para ver se estou de fato em casa, como se me escondesse do credor debaixo da cama. Ao forçar a casa, seus orifícios e eletricidades eram todos meus. Todos eu. Uma surpresa, um canto forte. Um peito em chamas, antes perfeitamente encaixotados, agora bradava por ser.
Eu sou um lugar quente e perigoso? - sopesei. Não, não mais o sarcasmo jovial, certeiro e discursivo. Nada daquela cortesia gentil e algo distante. A casa, sem mobília fixa e cheiro, não era uma casa. Mas, agora, ela estava toda acesa e tinha cheiro de cozido e zattar e incenso e plantas. Viva. Cantante. Rodante. Eu. Minha. Ali, amamentava meu filho com meus seios, e milagrosamente eles ainda existiam aos olhares externos. Assim como meu filho, rosado, vivo.Descobri que casa assim também assusta. E viver juntos de dentro de meus orifícios e falhas e sangues. Acalentando um corpo pequeno e quentinho, que me acalenta de volta enquanto tento parar tempestades com peneiras de fazer suco natural, saudável e positivo. Nada pode ser assim tão sensorial, composto de matéria orgânica e devir sensual, e ainda ser uma mulher.
Um só ventre não pode ser tantos nós. Precisa ser simples. Então, na cama, não se fala mais de filosofia. Não é mais ponte para travesseiro e corpo-cabeça. Tronco, árvore, caule, partes úmidas. Polos frio-calor. Esse seria um desterritório, da família, das construções. Ela performa, ela ressente. Essa mulher grita à caça, sem caça. Esse corpo auto-içado à frente da caminhada, sem sapatos. Arco, sem flexa. Está claro, ela é uma performance vazia. Decepcionante. Nem mãe, nem fera, nem puta, nem vítima, nem algoz. Quem é essa godiva de si, suspensa, que pensa ser concreta? Quem é que ela cria de si tentando ser sangue?
Abri bem as minhas janelas e dancei. Desfiz do que foi guardado. Falei, ouvi. Convidei, desconvidei. Fui. Desisti. Disse muito e calei e amei um tanto mais. Não ouviram, não viram, a pausa. Mas estou aqui, retornando, cutucando, sentindo, cavando e espalhando esse barro quente. Cuidando, velando. Eu doo, eu voo, você não me viu ali no canto? De viés, olhos brandos e cheios de pressa?
Sentença dedicada, dentro e fora. Sola e duo. Mantenho portas e janelas necessariamente escancaradas. Mas não como convite aos curiosos. Como uma afirmação. Fnalmente, vive ali uma mulher. Invertida e pungente ao vermelho a que talvez sempre retorna.
Lihemm Farah
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