Incêndios por toda parte

 Há incêndios. Por toda parte.


Carrego comigo ela, e também caixas de água hermeticamente fechadas, dentro. Ela carrega tochas e umas gentes perdidas entre gentes, que nada sabem do fogo. Mas que desejam queimar.


O que saberá ela da sede? Ou da fome? Não dessas de se beber ou comer, tampouco as que habitam mesas, copos, geladeiras, pratos, guardanapos e pontas de dedos. Nada simples ou essencial. Não, ela pulsa - uma fome de 5 vidas minhas, todas ateias, com sobrepeso e dedicadas a petiscos e alcoólicos. Eu, revés do fogo, águas fechadas. A boca seca, a cefaleia, a fome. A fome.


Pergunto-me, que sentirá ela da saliva? Da ânsia, do torpor, da confusão, do calor do corpo ao raiar do dia. De arder febril, diante da sua São Paulo, tão fria. 


Será que ela vê a destruição e as veias saltadas do meu colo? E que para ela toda a gente, úmida, põe-se tesa em têmperas gélidas e impiedosas, dispostas a atravessá-la, mesmo num Bom dia! Como flecha, cajado, canudo, soco, falo, chave e palito de picolé - mas sem fogo, esse é só dela. Diariamente, dela, antes que o mundo acabe. 


A atimia, minha, e o fogo, dela, trago-os comigo, enquanto sinto algo de solene que já não se encaixa nesses dias. E por que me dobro a sinos e adjetivos e musas diante da iminente distopia? Por que me inundo de terras tão áridas e sombrias? (Perceba aqui também, adjetivos!). Que influência árdega me obriga a contemplar sua exaustiva Babel cotidiana, como quem olha o filho ao nascer e, no mesmo compasso, como quem fita pela primeira vez vigorosos e rijos mamilos?


Todos os dias eu me agarro à minha mesa, às quinquilharias de papelaria, à cadeira. Todos os dias. Eu me prendo, me amarro, guio meus olhos para fora - dela. Para fora, da tela, para dentro. Levanto, pego o café. Perambulo pelo corredor até quase perder-me. Por ocasião, ela também. Sempre na minha intersecção, a provocar todas as minhas caixas.


Certa vez, ela me trouxe um folheto de qualquer coisa como um piquete universitário. Pensei se ela já não passava da idade de estar formada, pois me lembro que já me contara sobre estar desde muito jovem na universidade. Mas, como me salta essa imagem: um piquete. Piquete! A palavra mal sai da minha boca. Eu agradeço, agradeço. E sigo agradecida até a minha mesa, como quem recebe paralisada um panfleto de Compro Ouro.


Não foi a primeira coisa que ela me trouxe. Bombom com gosto de gordura hidrogenada. Caneta com cheiro de chiclete. Uma edição estranhíssima de um livro do Paulo Coelho. Manteiga de cacau. A escova de dentes que esqueci no banheiro. Um ímã de calendário da farmácia. Um jornal comunista abordando a revolução da 4ª guerra mundial. Um folheto de quentinha fit. Eu recebo-a, e todas as suas aleatoriedades de leveza irresponsável e obtusa. Eu recebo, disfarço e me espalho na gente, na mobília.


Por qualquer razão, acabo me juntando à manifestação dos estudantes - e a ela. Na verdade, o tal pi-que-te ficava em uma praça no centro, e eu pude talvez me camuflar entre ninguéns e alcoolizados. Eu olho as paredes bucólicas e descascadas. Os cartazes. Os rostos cheios de gritos e viços. As curvas da Bahia no seu tórax. Até me perder por janelas amarelas, flertar com o breu que toma a cidade, seus corpos anônimos. E, de repente, termino só, a perder-me dela e da gente que gritava palavras de liberdade. Não porque fui a qualquer parte, mas porque fiquei, ali, em pausa, à espera. Respirei gás de pimenta. Voltei em passos lentos e desacompanhados por 4 bairros, até a porta de casa. Algumas fachadas e placas quebradas, algum carnaval sobre os torsos. A ruína, o fim, não é culpa de ninguém.


Mas eu sou uma existência de viés, suspensa no ar. Vou me amparando lentamente em muros de praças, portais de cozinha, cadeiras de escritório, travesseiros mais altos que o recomendado - pela vida. Como se me pusesse. À espera. De um fim. Ela talvez me saiba e, por isso, brinque. No dia seguinte, vesti a minha roupa e a minha cara mais pastel para o trabalho. Ela comentou entre risos e retoques de batom: sumiu ontem, né? Eu sumo. Aliás, eu sinto - e quase toda a gente sente. Ela. O fogo, com e sem brasa. Uma certa náusea adocicada. Um quase silêncio de arrastão que passou por mim, mas que eu não vi. Esse silêncio é quebrado pelo estourar de bola de chiclete, e por seu mascar barulhento.


É incrível, ela mata e faz renascer a poesia, em tormentas cíclicas e enlouquecedoras. Mas quem é que ainda tem lucidez nesses dias? Vê, a ruína de tudo que se pensava saber; ou que em parte se sabia. Todos os dias. As pessoas como reflexos de si, invertidas, mas sem pernas e pés. E então como que se vai a qualquer parte? Como que se destrói e constrói? Como se iça às multidões a fúria ou a paixão que transformam e queimam Tróias?


Sem fogo, ela descansa os seus enredos tomando o café bem doce, como uma criança, sempre, sem exceção. E o tomará até nos declarar o fim do mundo. Se não de terceiros ou quartos mundos de humanos ocidentais que somos, certamente o fim desse meu mundo interno, exterminado cautelosamente a unhas de glitter. Minhas entranhas e órgãos, em suas mãos, lânguidas, lambrecadas de hidratante frutado. Meu corpo, oco e enfeitiçado pela graça e pelo vão. Sobretudo, pela graça e pela rebeldia - sim, repleta de vazios, como nós.


Homens já anunciaram e arderam e perderam guerras por semelhantes chamas. Eu, me rebuço toda, ao fundo. A cada instante. E testemunho nova temporada de jogos e caças se imporem aos meus silêncios. Ela, dela. O seu riso aturdido e leviano. A insistência de brindes e lembranças infantis. O olhar denso, a me fazer convites e desconvites sorrateiros. A sombra curvilínea sempre a me influenciar pelas ruas da cidade, em descompanhia.


Ela entra no elevador. Eu, não. Naqueles segundos, ela me fita com grave firmeza, quase como se estabelecesse comigo um acordo silencioso de ambiguidade e vazios. Quando findou sua captura, desviou os olhos para um folheto - cirúrgica - antes da porta do elevador se fechar. Eu sigo. Cravando. O não-olhar.

 

Ela estrutura um acordo de poder. Eu perpetuo a sede e o estio. Ela, perfuma e incendeia a batalha de todo dia, o motim sem manifesto, a curva íngreme sem pavimento em que é certo que vou cair. E cairei, como cairemos todos. Até a última caixa. Até a derradeira gota de água. E caídos, deitaremos à terra o sono pleno e o deleite dos mistérios, em troca dos cantos da guerra, da certeza e da beleza, sempre terríveis e cheios de levantes.


Como disse, há incêndios por toda a gente. Mas há quem se acolha toda tocha. E há, por certo, quem ainda queime.


Comentários

Postagens mais visitadas