O que é uma casa?
O que é uma casa? O que coabitamos no tempo hoje? O que você quereria, o que eu despertei?
Entrelaçar de pescoços, todo Dalí. Pequeníssimas explosões multiplicadas em criação de atmosfera, ninho suspenso no desfiladeiro, movimento dentro, dança. Mesmo copo, prato, escova de dentes, mesma sombra sob araucárias: 576 habitantes, toda uma população.
Você, dente exraizado, seu, enfiado nas minhas gengivas-portas. Boca aberta, mais oxigênio que gente. Mais gente que casa. Mais casa que medo. Mais nós, em cada copo colorido a desbotar, vitrola quebrada e caixotes fofinhos que empoeiram livros. Composições proto poéticas sobre paralelepípedos trazidos de uma noite em que o mundo nos disse: melhor é ser.
A gente pulsa, e conserva. Pulsa, vibra, sangra, cria. Conserva. Empilha. Esconde atrás da quina.
Casa não é isso.
Tentei me mover com a casa, criar redemoinho-devir de dentro do calabouço. Remover, remexer. Mínima. Potente. Espalhada. Etérea. Mas a terra me fez raiz. Raiz que se quis nuvem, pra se ver casa. Casa repartida. Parte em mim, parte no mundo. [ainda é uma casa, é?] Um sentir que se viu casa que se fez quase que antítese. Que quereria ser casa-paradoxo.
5h da manhã. Eu escuto esses passos estalando sobre o laminado de madeira. Passos seus, pesados, lentos, fortes, sem direção. Até ser uma camada quente sobre as minhas costas, já fogo. Apenas linhas fantasmagóricas de mim.
É tudo teu, menos a cama. Cama, que foi casa, que se fez mortalha-meio-tapete, no ar. No centro de uma árvore ancestral que ora acolhe, ora inflama. Leito de um amar transitório, que não te cabe mais na duração. Tampouco me cabe só. Eu e marcas fantasmas suas materializadas ali, logo ao lado. Um esquentar de dedos que não são, não ali. Não casa.
A gente sempre pode percorrer e entrelaçar nossa nudez no sofá-cama. Cabe um sofá no devir? [Lembrar de: melhor é ser.]
Não fossem as catástrofes enfiadas n'minha orelha esquerda, a inquietação sua de peito e pés, a gente seria uma casa-barco. E ali eu riria da sua pesca experimental. [Também ririam os peixes] E todo o oceano nos mostraria seus dentes. A criança de nós dois nos ensinaria habilidades de sobrevivência - mais de uma vez - como um pedacinho de cosmo todo potente e gozador. E nós nos confundiríamos entre ondas e dentes. [Comeríamos bem, a cada vinte e quatro horas].
Oceano sem processo não é casa pra gente.
Ou seríamos uma casa construída quase que submersa. Mar. Rio. Poesia estampada, constantemente sob risco de enchentes, como nós. Haveria ali um quintal-peito-aberto. Também, uma árvore. Uma vara de pescar apoiada sobre o muro baixo de cimento. Você divertiria os peixes. Eu iria à peixaria. A criança de nós dois colocaria siris bebês em garrafas cortadas, a empestear a casa. [Comeríamos bem, sem dúvida, mesmo que com cheiro de siri de garrafa] Caminharíamos sobre águas estranhas rumo a um horizonte submerso. [E como eu poderia me esquecer? Aquela luz sobre água mansa de barco atracado. Infestação de pássaros. Utopia feita fluxo. Você por algum motivo segura uma laranja não descascada. Composição.]
Casa de portas abertas, num subúrbio qualquer. Água no feijão. Batuque. Perigo. Música mais alta que o volume. Nudez tão compulsória como nascem e morrem as coisas. Meias em lugares estranhos; nunca entendi qualquer coisa sobre meias. Uma pilha de roupa pra lavar. Porque nos distraímos com a dança e a música e as palavras. Tantas palavras. Diversas tentativas minhas de manter as plantas vivas. Uma bloco inteiro de carnaval de surpresa na cozinha. Um cantinho pra um livro de receitas-retratos, escrito a quatro mãos.
Quase-casa. Amor espalhado no mundo, sem se caber. Sem ser habitação, sem ser formato. É ética. Mas não é estética. E o que é uma casa, meu bem, na duração?
Sou eu, sempre cheia e vazia, a te encontrar por curvas e dobras e sofás-cama. É a recriação do mundo em 20 minutos. É uma dor quentinha para descansar as bochechas. É uma espera que não expecta.
É gozado, eu diria. Uma casa que naufragou é uma casa. Mas você ainda tem medo do mar.

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