Ela

Ela caminha através de pegadas já conhecidas. O barro entrando pelos dedos dos pés. Pedaços. Ela insiste em limpar a argila à medida que esta endurece. E chafurda novamente os pés na terra avermelhada, quase alaranjada. Retira detritos. Pisa novamente. É como que infiltrassem nas falanges partes de um barro profundo. [Ao barro retornaremos.]

Cansa os calcanhares. Tenta andar diferente. Apoia seu peso sobre os dedos, barro-entre-dedos. Cansa. Senta. Alcança seus pés, como o chão úmido. Anda também com as mãos. E, com mãos e pés e patas tenta correr. E acelera, e corre. Ela, sobre um longo caminho. 

Enxerga em si um belíssimo animal, besta feita de barro. A terra que endurece e molha e endurece e molha, o suor escorre, sobre o seu corpo. Outro corpo, feito natura, feito bicho. Ela, outra, isto, coisa-quimera-fêmea-humana. Ela. Animalizada e divina e exausta, recosta a cabeça por um momento, breve instante, que se parece mais com pausa que é tempo, do que com tempo que também é pausa. Ela olha o céu como nuvem como copa de árvore como tempestade não aparente. Respira uma pausa inteira antes de retomar sua posição ferina.

Unhas quebradas. Boca aberta. Pele feita terra. Seca. Úmida. Seu deslocar soca o chão. Das suas costas tensionadas pela força, um calor de brasa atravessa todo o seu corpo. Contrai. O abdome. A pelve. Seus músculos tremem. Quase que num parto de si, urra de prazer e de dor.

Há uma árvore em seu caminho - que ela sabia ser árvore antes de poder ver com olhos abertos. Seu vigor está exaurido pela própria vida. Uma vida inteira, pulsante, porém sem fôlego para pausas. Uma ribanceira que ficava para além de lilases - que são formas lindas e puras e estranhas à essa região. Após a ribanceira há um tombo. E cai. Ali, coisa-quimera-fêmea-humana entregue à queda. Há sangue, sem dúvida, mesclado ao barro feito suor feito barro feito estátua viva, ensanguentada - viva. Recobra a consciência que resta, toda instinto. Se apoia sob a copa robusta de uma árvore anciã. Tronco enorme, largo, tronco-tempo. Raízes sobre raízes que se lançam aos céus em galhos que mais parecem tentáculos. Árvore, tempo; árvore, vida; árvore, história. Escala sua última força através das raízes. Corpo feito bicho feito árvore. Repousa, num sono recém-nascido.

Horas e pausas e assobios-quase-gritos de aves irreconhecíveis. Uma chuva densa inunda o seu chão ao redor. Ela acorda - mais humana que bicho, ao que ela temia e esperava e ansiava, mas temia. Partes de seu corpo feito tronco, feito folha. Uma humanidade dilacerante. Se separa de suas partes-árvores, retorna ao chão. Se lava de chuva numa dança quase apocalítica.  Uma gira, um canto, grito à seco, num ritual muito limpo e humano e natural. Bebe da água. [É água.]

Coisa-quimera-fêmea-humana-árvore-mulher. Se alimenta da seiva antes de retornar às suas partes vegetais. [Ela] A vulnerabilidade gritante, a força da natureza, os últimos raios de dia sobre a silhueta  nua acolhida por um enorme galho-tentáculo. [O caminho para o céu. Um céu.] É sua própria casa, tempo, história. É galho, é fluxo, é seu próprio sexo. Pausa de compassos infinitos, como barro, como árvore, como vento. 

Ela é, e já não era sem tempo.

Ilustração do artista e irmão Karim Venturim

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