A BORDA DOS JARDINS
Kala guardava totens em seus jardins. Eram como pedacinhos de grito em caixinhas anamórficas. Lá cabiam tesouros. Cabeças de bonecas. Ossinhos de galinha roubados da refeição. As mãozinhas gordinhas de dedos sujos examinavam, enterravam, embalavam. Ritualística-quase-ciência. Eram fragmentos seus. Do mundo. Umas vezes, só matéria per se, n'outras quase que dedilhados do cosmo.
Kala era. Estava. Ia. Meio deuso, deusa, viva, bailante. Quimera bonita de inúmeras mãos e braços, com terra presa às unhas curtinhas. Era só dela, e era também todas as coisas que pegava à mão. Uma pulsação risonha, desengonçada, sempre um pouco bizarra, como tudo que é verdadeiramente bom.
Quando se cansava das coisas que só podiam ser coisas, ou ter usos, ia se aventurar por outras mirabolâncias. Saía dobrando, esticando, embolando - o universo - pelos quintais secretos da sua cabeça-vento.
Se numa segunda-feira Kala é encantadora de serpentes, lá pra quarta já está guerreira valorosa, ou mãe que possa ser também filha e irmã. De tardinha, é seu próprio bumerangue, ao que lança a si mesma sobre o vento e fica na ponta dos pés para se apanhar de volta. É pintora sempre, mas só de flores. [E apenas aquelas que sorriem.] É, ainda, um tipo outro de enxadrista - joga contra sua sombra, só que com galhos e folhas, e sem qualquer coisa como limite espacial. Um xadrez só dela, bonito, lento e difícil de explicar.
Ela também é, sem dúvidas, a guardiã mundial dos bichos que existem. Ou quase todos. Ela não incluiu os que têm listras, pois esses a aborrecem. E até o fim daquele ano, que poderia ser não mais que um dia, pretendia ser escritora de livros bons e grandes e velhos; desde que necessariamente bons e grandes e velhos.
Mas, há algo de agridoce no ar. De um tipo que ela não gostava. Um vento duro, pesado, empoeirado. Como uma partida sem movimento, uma morte sem se saber luto. Algumas tardes são metálicas, já viu? Ela viu. E não gostou.
Sombras geométricas. Luz metal. Até os cheiros fusíveis, inconfundíveis. Retrogosto, mas ela não saberia dizê-lo. Aquele entardecer ardia vil sobre os saltitos infantis de Kala. Janelas e portas arregaladas. A mesma visão daquele chão de terra batida e dos azulejos portugueses azuis, gastos. Baldinho de outros verões, cheio de areia. Um velho pé de espada de São Jorge ao lado dos hibiscos vermelhos. Aquela era uma unidade pré-moldada pro além; abrangia e extrapolava as arenas imaginárias. E porque era um tempo outro, num espaço-além das grandes descobertas, ela forçou a maçaneta.
Mas é que houve essa tarde-metal, um pouco menos azul, e de minutos arrastados. E, finalmente, linhas traçadas sem horizonte. Ela soube que não poderia passar dos portões.
Portões. P O R T Õ E S. Passagens que abrem muros.
Mas ela não atravessaria nenhuma porta, portinhola, ou janela semanticamente flexível. Nenhum portão que fosse o que chamam por..."de verdade". Não pode porque há bichinhos lá, entreouviu. Logo ela, guardiã absoluta de (quase) todos os bichos. Que azar, ser acometida por multidões de bichos listrados para além de portões.
Kala-para-aquém-dos-portões, consternada, sentou-se em seu banquinho de madeira e resolveu fitar o dia. A brisa daquela sexta-feira parecia uma canção. Mas, no dia em que descobriu fronteiras, ela não dançou. Não de pronto.
Não examinou insetos, tampas de garrafa ou espinhas de peixe. Não foi navio, nem mar, nem golfinho voador. Não esperou por doces de guarda-chuva ou pelo cheiro alaranjado da tarde. O dia mais longo do mundo, ela pensou.
Kala começou a perambular pelo quintal, de cima a baixo. Deitou-se sobre a terra. Adormeceu. Despertou sentindo que envelheceu ali, naquelas horas, mais do que nos dias em que foi mundo sem zonas limítrofes.
Um vento adocicado lhe traz os últimos raios do dia. Uma dama da noite canta além. Kala acaba de viver vidas, ali, imóvel. Foram horas? dias? Meses? Quem sabe?!...
Talvez, ali, na noite de sua infância, tenha percebido quase que um tipo de fenda no tempo. No seu tempo. E que se um dia podia ter infinitas horas - mesmo entre muros - o tempo, como ela, na verdade não tinha borda.
Bordas não precisam de caixas ou portas. Kala percebeu novamente os seus jardins, dentro, fora. Se vestiu, enfim, de novidades.
Todas as coisas têm algum tipo de manha. Portas, dobradiças. Pião, corda. Cadarço, laço. Só que tempo não é como portões e muros, além de ser claramente feito de particularidades distintas daquilo que constitui as casas. Kala agora sabia disso. Aliás, nesse dia ela soube sobre muito. Percebeu a sombra da luz. O limite do que pulsa. Sentiu a pausa que também é música. O estacar que compõe tudo que é dança.
O grito preso nas cabeças-tótens e ossinhos colidiram com tudo o que há. O tremor. O contorcer. O beliscar involuntário na pelinha de unha do indicador.
Kala sem bordas. Tempo sem corda. Entre saltitos e quimeras, foram ter com essa energia causadora de não vermos só pedra nas pedras.
O mundo, cheio de departamentos, vez ou outra é sim uma bola bonita acachapada pela poesia. Pedras, portões e muros bordados no real.
Quintais e jardins são coisas mesmo pitorescas, disso todo mundo sabe. Só que as bordas confundem.
Ao fim desse algo-dia choveu uma chuva cheirosa. O metal transbordou num frutado cítrico. Mãozinhas terrosas. Cola de abiu. Sinfonia de bambus. E Kala dançou. O tempo.
Kala era. Estava. Ia. Meio deuso, deusa, viva, bailante. Quimera bonita de inúmeras mãos e braços, com terra presa às unhas curtinhas. Era só dela, e era também todas as coisas que pegava à mão. Uma pulsação risonha, desengonçada, sempre um pouco bizarra, como tudo que é verdadeiramente bom.
Quando se cansava das coisas que só podiam ser coisas, ou ter usos, ia se aventurar por outras mirabolâncias. Saía dobrando, esticando, embolando - o universo - pelos quintais secretos da sua cabeça-vento.
Se numa segunda-feira Kala é encantadora de serpentes, lá pra quarta já está guerreira valorosa, ou mãe que possa ser também filha e irmã. De tardinha, é seu próprio bumerangue, ao que lança a si mesma sobre o vento e fica na ponta dos pés para se apanhar de volta. É pintora sempre, mas só de flores. [E apenas aquelas que sorriem.] É, ainda, um tipo outro de enxadrista - joga contra sua sombra, só que com galhos e folhas, e sem qualquer coisa como limite espacial. Um xadrez só dela, bonito, lento e difícil de explicar.
Ela também é, sem dúvidas, a guardiã mundial dos bichos que existem. Ou quase todos. Ela não incluiu os que têm listras, pois esses a aborrecem. E até o fim daquele ano, que poderia ser não mais que um dia, pretendia ser escritora de livros bons e grandes e velhos; desde que necessariamente bons e grandes e velhos.
Mas, há algo de agridoce no ar. De um tipo que ela não gostava. Um vento duro, pesado, empoeirado. Como uma partida sem movimento, uma morte sem se saber luto. Algumas tardes são metálicas, já viu? Ela viu. E não gostou.
Sombras geométricas. Luz metal. Até os cheiros fusíveis, inconfundíveis. Retrogosto, mas ela não saberia dizê-lo. Aquele entardecer ardia vil sobre os saltitos infantis de Kala. Janelas e portas arregaladas. A mesma visão daquele chão de terra batida e dos azulejos portugueses azuis, gastos. Baldinho de outros verões, cheio de areia. Um velho pé de espada de São Jorge ao lado dos hibiscos vermelhos. Aquela era uma unidade pré-moldada pro além; abrangia e extrapolava as arenas imaginárias. E porque era um tempo outro, num espaço-além das grandes descobertas, ela forçou a maçaneta.
Mas é que houve essa tarde-metal, um pouco menos azul, e de minutos arrastados. E, finalmente, linhas traçadas sem horizonte. Ela soube que não poderia passar dos portões.
Portões. P O R T Õ E S. Passagens que abrem muros.
Mas ela não atravessaria nenhuma porta, portinhola, ou janela semanticamente flexível. Nenhum portão que fosse o que chamam por..."de verdade". Não pode porque há bichinhos lá, entreouviu. Logo ela, guardiã absoluta de (quase) todos os bichos. Que azar, ser acometida por multidões de bichos listrados para além de portões.
Kala-para-aquém-dos-portões, consternada, sentou-se em seu banquinho de madeira e resolveu fitar o dia. A brisa daquela sexta-feira parecia uma canção. Mas, no dia em que descobriu fronteiras, ela não dançou. Não de pronto.
Não examinou insetos, tampas de garrafa ou espinhas de peixe. Não foi navio, nem mar, nem golfinho voador. Não esperou por doces de guarda-chuva ou pelo cheiro alaranjado da tarde. O dia mais longo do mundo, ela pensou.
Kala começou a perambular pelo quintal, de cima a baixo. Deitou-se sobre a terra. Adormeceu. Despertou sentindo que envelheceu ali, naquelas horas, mais do que nos dias em que foi mundo sem zonas limítrofes.
Um vento adocicado lhe traz os últimos raios do dia. Uma dama da noite canta além. Kala acaba de viver vidas, ali, imóvel. Foram horas? dias? Meses? Quem sabe?!...
Talvez, ali, na noite de sua infância, tenha percebido quase que um tipo de fenda no tempo. No seu tempo. E que se um dia podia ter infinitas horas - mesmo entre muros - o tempo, como ela, na verdade não tinha borda.
Bordas não precisam de caixas ou portas. Kala percebeu novamente os seus jardins, dentro, fora. Se vestiu, enfim, de novidades.
Todas as coisas têm algum tipo de manha. Portas, dobradiças. Pião, corda. Cadarço, laço. Só que tempo não é como portões e muros, além de ser claramente feito de particularidades distintas daquilo que constitui as casas. Kala agora sabia disso. Aliás, nesse dia ela soube sobre muito. Percebeu a sombra da luz. O limite do que pulsa. Sentiu a pausa que também é música. O estacar que compõe tudo que é dança.
O grito preso nas cabeças-tótens e ossinhos colidiram com tudo o que há. O tremor. O contorcer. O beliscar involuntário na pelinha de unha do indicador.
Kala sem bordas. Tempo sem corda. Entre saltitos e quimeras, foram ter com essa energia causadora de não vermos só pedra nas pedras.
O mundo, cheio de departamentos, vez ou outra é sim uma bola bonita acachapada pela poesia. Pedras, portões e muros bordados no real.
Quintais e jardins são coisas mesmo pitorescas, disso todo mundo sabe. Só que as bordas confundem.
Ao fim desse algo-dia choveu uma chuva cheirosa. O metal transbordou num frutado cítrico. Mãozinhas terrosas. Cola de abiu. Sinfonia de bambus. E Kala dançou. O tempo.
Comentários
Postar um comentário