Avesso
Hoje acordei com a morte na boca, invertido. Cardiopatias inatas.
Não podia mover o braço esquerdo. Não tinha dormência ou formigamentos. Era apenas ausência. Levava ainda um gosto de ferrugem na boca e o pouco cheiro que eu conseguia sentir era ruim. Não sabia se tinha tomado um grande porre, do qual não me lembrava, ou se estava adentrando o desfiladeiro.
Louco eu não estava. Nunca. Nenhum traço de histeria em minha natureza. De qualquer modo, esse é um termo arcaico para justificar trejeitos da natureza feminina. Não, nem em pensamento. Sou cerebral, como poucos.
Não podia levantar da cama e Clara não parecia estar por perto. Se ela passasse pelo corredor talvez estranhasse a minha inédita sonolência e viesse averiguar minha saúde. Nunca acordo após as 10h, ela sabe. Nem em feriados. Nem se me sinto indisposto. Nada mais razoável do que vir se certificar de que está tudo bem. Falta de consideração.
Umidade na quina entre parede e teto. Uma das muitas coisas que eu adiei. Casamento. Viagem com os meus pais e os dela. O encanamento podre da cozinha. Essas coisas que a memória cotidiana propositadamente deixa passar. Listas de geladeira. Instalar o ar-condicionado. Viajar para o leste europeu. Comprar um cachorro. Abrir a parede entre a cozinha e a sala. Porque vai deixar o cômodo mais arejado. Bem, isso foi ela quem falou. Eu não falei nada.
A casa precisa mesmo de uns reparos.
Ela certamente não está em casa, do contrário já teria vindo. Clara é sempre tão atenciosa, deve ter ido comprar algo gostoso para a gente comer. Sexo após o café da manhã.
Clara gosta de tudo manual, físico. Filas de banco. Pagar em dinheiro. Escrever cartas. Vídeo locadoras. Eu disse que isso de locadora é um hábito desnecessário, burro. Ela diz que gosta de filmes organizados em estantes. Que organiza seus pensamentos. Estantes, bilhetes, filas e agendas de papel. Nunca vou entender.
Merda. Ela saiu com certeza e não disse uma palavra sobre onde iria. Deve ter deixado o celular. Ela sempre diz que esquece, mas acho que pode ser de propósito.
Devo estar mesmo prestes a morrer. Meu corpo é carne pútrida, molenga e sem força. Meu emocional é uma velha na menopausa. Melhor fechar os olhos e esperar pela morte.
Seria um tanto mais gentil se esse bater de botas não fosse tão demorado. Velar meu próprio corpo está longe de ser uma ambição que eu tenha.
Talvez ela me traia com aquele professor encomendado de Cuba. Eu não sou muito esperto, mas corno eu acho que nunca fui. Se eu vivesse mais um dia podia comer a irmã dela em vingança. Enfiar a cara naqueles peitos tão generosos seria uma boa recompensa.
Marcela. Sempre me perguntei se ela era frígida ou uma completa depravada. Esconde demais o jogo, acho curioso. Clara sempre pareceu fazer tudo com extraordinária espontaneidade. Marcela não. Marcela guarda um mistério. Cheguei a pensar que era lésbica.
Podia levantar. Vou levantar. Talvez seja perigoso.
Sei que o Fernando fica rondando a Clara quando eu não estou por perto. Como eu o acho um completo babaca, eu digo a ela que não ligo. Mas fico secretamente pensando que se eu morresse atropelado o infeliz estaria lá no dia do meu enterro já para preencher a vaga recém-aberta. Filho da puta! Ela diz que tem pena. Que o deixou com o coração partido. Não entendo o porquê de dizer tais coisas quando ela sabe que eu não me importo. Só me deixa puto. E neurótico.
Bem, não faz diferença. Vou morrer sozinho nessa cama e o vagabundo vai bater ponto aqui em casa. Talvez trace até a irmã peituda. Maldito seja.
Eu finalmente me levanto. Vou me apoiando nas paredes e nos móveis. Cruzo a cozinha e o corredor. Luzes apagadas. É noite. Vou marchando perplexo até o banheiro. Olho o espelho, mas não a mim. Não é a minha imagem que eu vejo. É apenas um lembrete. Um mau presságio do que já foi.
A casa parece fechada há anos. Poeiras e vazios. Olho em volta, nos móveis, nos sinais de existência, na louça que apodrece na pia, tudo que eu posso ver e tocar é a minha loucura e o meu esquecimento. Alheamento.
Tudo ali não é Clara. É o avesso dela. E é não de hoje.
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