O Ator



Ele se levanta e caminha entre os destroços da noite anterior, até a geladeira. Gosto de guarda-chuva e sangue.

Pega uma cerveja já aberta. Não há mais nada.

Merda. Cheiro de merda. Um odor pútrido. Ácido. Ele tenta mas não consegue se lembrar, dói. Sobre a cama há uma navalha, mas ele simplesmente não consegue se lembrar.

Desfila o corpo nu, imundo, pela desordem. É só um ator.

Amnésia. Força a lembrança contra o espelho. Nada. Apenas enxaqueca e mau cheiro. Merda, cheiro de merda.

Ele arrasta o corpo nu e cansado até a janela. Gosto de guarda-chuva e sangue. Põe um disco para tocar. Ele olha. Através da janela, o fim do mundo.

Acende um cigarro. O último. Observa a confusão por detrás do vidro úmido. Ele gosta. O caos parece uma música. Ele então dança o corpo nu e escorregadio pela sala. Cerveja velha e cigarro, último. O que aconteceu na noite anterior? Não importa.

Flutua o corpo nu e molhado de volta à janela.  O fim do mundo. Ele observa a violência como um ritual todo inocente e sensual. Um jovem é espancado pela polícia. Motim. Sangue. Não há maior verdade no mundo, ele sabe.

Acabou o cigarro. O último. Cerveja com gosto de guarda-chuva e sangue. Ele veste o seu corpo nu, cambaleante. Ainda não se lembra, não pode! Olha ao redor. Uma navalha. Apenas uma navalha sobre a cama. E aquele cheiro de merda!

Através da janela, o fim do mundo. Ele passeia o corpo inerte pela multidão e pelo lixo. Ainda não se lembra, não quer.

Sangue e guarda-chuva e cerveja. Uma última gota. Arremessa a garrafa, que atinge a cabeça de um policial. Ele sangra, não há maior verdade no mundo. Seus olhos se dispersam e misturam nos outros, como se dançassem. Um cassetete o atinge com força. Excitado demais para reagir, deita o corpo apocalítico no meio da avenida.

Está finalmente livre da merda, do guarda-chuva e da enxaqueca.  Não consegue sentir nada. É inapto. Apenas finge.

Mesmo ali, sobre o asfalto, é inapto. É só um ator.

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