Um samba pra comentar, um crime pra distrair
O movimento na rua não é diferente de uma terça-feira à noite. Dia de
futebol de várzea, não que eu seja convidado.
Não há nada extraordinário, divino. Nada noticiável ou emocionante.
Nenhum presidente morto, doente ou adúltero. Sem qualquer falso alarde a
desastre natural ou tempestade imprevista. Vida extraterrestre, naufrágio,
prêmio Nobel. Queda ou subida alarmante da bolsa, escândalo político.
Manifestação, greve, violência policial não velada. Um viral que se mereça
mencionar, globais vestindo preto e placas para protestar. Ninguém comenta a
última heresia ou o último episódio de Mad Men. Leilane não vestiu botas
de paquita. Hoje não é dia de pagamento.
Esse dia não parece ter entrado para a história.
Peço a cerveja de sempre, no bar de sempre. O mesmo garçom me atende com
ares de “eu sei que você levou um pé na bunda”.
Cerveja, dois copos. Mantenho a minha dignidade pedindo uma comida para
os fortes. Feijão amigo. Pedi cheio de orgulho, Capricha no bacon!
Pausa.
Era óbvio que eu estava sozinho. Eu era um clichê, uma piada
pronta.
Parou uma ambulância do outro lado da rua. Rostos se voltam para uma
tragédia anunciada, esperada, ansiada. Eu mesmo o faço, busco algo que compense
e anuvie a farsa de mau gosto que eu falseio em modos rotineiros e moletom.
[Mas que entreguei de bandeja ao garçom. Ele não percebeu. Também não vai me
chamar pra pelada de pós-expediente].
Um corpo coberto. Coberto de gritos femininos em sforzandos, de lona, de
velo, de paramédicos ornamentais. Foi um pouco demais, para os demais, estes
que esperavam por algo mais corriqueiro. O hediondo saltou do banal, e isso não
desce muito bem com bife a cavalo.
Pausa.
O garçom me serviu uma cerveja sorrindo. Péssimo presságio, ele nunca
sorriu pra mim, em anos. O feijão não estava amigo, estava queimado. Menos mal.
Tamanha podia ser a simplicidade daquele dia, não fosse a minha manga
levemente manchada de sangue, a sudorese deselegante, a criança da mesa ao lado
que me espreita como um urubu rei.
Menina, loura e feia, com algo em torno de uns seis anos, espera
pacientemente por qualquer tropeço meu. Ela encara como se soubesse o tipo de
patife que eu sou. E me recomponho. Não.
Evito o contato visual.
Alinho o segundo copo ao meu, só que virado para baixo. Tiro de baixo da
mesa uma sacola de papelão, com alças grossas, pretas. Meu pai me entregou um
queijo de uma viagem que ele fez com a vizinha, sobre a qual não quis entrar em
detalhes. [Não sei nada sobre a inha lá do 603, só que ela tem cheiro de
alfazema com coalhada. Perturbador.] Tiro o queijo da sacola.
Pausa.
Urubu rei. Ambulância. Corpo. Sudorese. Eu já sem camisa com o queijo
cortado, servido em um prato transparente, mal lavado, à minha frente. Espeto
palitos sem pressa. Temperado. Meus ruídos internos são palhetadas numa corda
prestes a 'rebentar. Caminho de passos trocados, irregulares, com o queijo
feito em Minas por uma senhora simples, mas muito distinta. Palavras cafonas de
meu pai. Ofereço a uma jovem sozinha sentada, também sozinha. [já disse isso,
não disse?] Falei onde me hospedava temporariamente há dois anos. Ela se
assustou, se assustou. Tratou de paginar em falso um livro que tinha nas mãos,
meio desajeitada, em meio a ambulância, falatório e Jukebox.
Sento novamente à mesa, esse foi um péssimo movimento. Mas já não
controlo os impulsos, minhas veias saltadas.
O corpo parte com a ambulância, leva com ele a harmonia do incômodo e
último causo, já comentado e esgotado. Fica o samba. O de-todos-os-dias. Eu tento
calar o meu monstro guardado em cativeiro. Empurro afásico um gole da cerveja
choca de sangue. Desce o refluxo, fica o samba.
Renove essa porra. Está sendo muito bom te ler.
ResponderExcluirRenovando!
ExcluirJá não era sem tempo, Nina.
ResponderExcluirHahahha Nina?!
ExcluirUhum! Ao menos foi assim que se apresentou. em alto e bom som. Nome simples, nem bêbado esqueceria. ;)
ExcluirNononono.... Nome coisa nenhuma; alter ego.
ExcluirE, no caso, como você se apresentou em alto e bom som?
ExcluirBeto. mas devo ter falado bem baixo. :D
ExcluirDeve ter sido isso...
ExcluirHahahahaha
ExcluirNina.... Bebette?! O.o
ExcluirJá não era sem tempo, Nina.
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